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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O CONTO DO PERU

Relembrando e buscando apoio nas velhas estórias contadas e anotações deixadas pelo meu querido e inesquecível avô Antonio Campos Melo, pessoa simples, funcionário do antigo Departamento dos Correios e Telégrafos, de excelente índole, inteligente, honesto e, que gostava muito de escrever, encontrei nos seus alfarrábios manuscritos um fato policial que diz ele ter sido verídico ocorrido nos idos dos anos 30 do século passado, aqui na nossa simpática Aracaju, que por ser interessante passo então a contar, mudando os dados das figuras principais do enredo para não haver identificação, pois não sei dos seus herdeiros para pedir permissão para tal.

Consta que o Senhor João Limeira, comerciante próspero da antiga Aracaju, possuía uma sapataria situada na Rua João Pessoa, então via principal do centro da cidade.

João Limeira, além de ser um verdadeiro unha-de-fome, tinha a fama de esperto, de nunca ter sido enganado por alguém, de nunca ter perdido um centavo sequer para qualquer pessoa, razão pela qual, gabava-se de ter prosperado na vida, não só pela sua luta, pela sua capacidade, mas também por conta de tais atributos.

A vida de João Limeira resumia-se em quatro coisas, tão simplórias quanto acomodadas e estranhas pareciam ser: casa, trabalho, feira semanal e enterro de alguém a partir do seu respectivo velório... Não tinha nenhum vício nem tampouco se divertia ou levava sua mulher e seus filhos ao parque, praia ou cinema, não ia a lugar algum ou fazia algo diferente além dessas quatro atividades para não ver o dinheiro sair do seu bolso desnecessariamente.

Em casa muito economizava, regrava de todo jeito e reclamava gastos extras com a sua esposa, no comercio negociava sapatos mais baratos com menor lucro justamente para vender mais, na feira pechinchava de tudo e estava sempre na xepa, no resto de feira, enquanto que, para sua estranha diversão estava o velório e enterro de pessoas amigas, conhecidas ou não. Para o diferente e mão-de-figa cidadão o importante era morrer alguém para ele estar presente em condolências.

Ninguém entendia se era mania psicótica, quem sabe medo, trauma, superstição, ou mesmo grande virtude, qualidade, humanismo, mas o certo é que João Limeira era solidário com os familiares dos mortos, fosse quem fosse. Não perdia nenhum velório e acompanhava todos os enterros, de rico ou pobre que dele tivesse conhecimento dentro de Aracaju, fazendo até questão de pegar na alça dos caixões, ou seja, ajudar a carregar os defuntos nos trajetos até os cemitérios que por muitas das vezes eram feitos a pé.

Além de participar de todos os funerais o senhor João Limeira usava nesses eventos o indumentário que de melhor possuía. Vestia de maneira garbosa o seu lindo a alinhado terno preto italiano, além da sua camisa branca de seda chinesa e uma gravata azul-marinho portuguesa, sem esquecer-se dos seus sapatos pretos também importados que de melhor tivesse em sua loja e, do seu valioso relógio de bolso suíço cravejado de diamantes com grossa corrente de ouro 18 quilate que sempre estava no bolso do paletó e só era usado somente nessas ocasiões. Para se manter impecável nessa sua mania o senhor João Limeira não tinha medido esforços, era o esse o único meio que tinha saído dinheiro do seu bolso sem reclamação . Com esse rico vestuário de gala ele orgulhosamente e garbosamente desfilava na sua homenagem aos mortos.

Falavam que além da sua importante casa comercial, da sua boa residência situada na Colina de Santo Antonio e do seu invejável e sempre brilhante Ford preto 1930, o que o senhor João Limeira tinha de mais importante e valioso era esse indumentário usado nos enterros.

Buscando economizar combustível no sentido de não ter que voltar em casa para se aprontar quando houvesse um eventual falecimento ao seu conhecimento, todos os dias o João Limeira trazia para o trabalho e levava de volta para sua casa o seu estimado vestuário-mortuário.

Certo dia ele se esqueceu dessa obrigação, ficando por isso muito preocupado, tendo comentado com o seu funcionário de confiança:

- Estou rezando para que não morra ninguém hoje, pois caso contrário terei que voltar em casa ou pagar alguém para ir até lá buscar a minha roupa que me esqueci de trazer...

Ocorre que alguém, um vigarista quem sabe, estava ali próximo olhando os sapatos e ouvindo a conversa logo arquitetou um plano: Adquiriu um peru para impressionar e se fazer de confiança, indo em seguida até a residência do comerciante que todo mundo sabia onde ficava. Lá chegando se apresentou para dona Josefina como sendo porta-voz do seu marido que pediu para que o mesmo entregasse o peru que ganhara de presente e pegasse a sua roupa, vez que tinha ocorrido o falecimento de alguém. De pronto a mulher sem desconfiar de nada entregou tudo ao trapaceiro.

Só restou, além da raiva e da bronca do senhor João Limeira ao chegar em casa e constatar o golpe, o trabalho de ir até a Chefatura de Polícia para registrar a ocorrência e se contentar com o arremedo do prejuízo, comentando tristemente:

- Pelo menos ele nos deixou um peru para a ceia do próximo Natal!...
Passados de 30 a 40 dias, já próximo ao Natal, quando tudo se acalmou, o suposto vigarista completou o seu golpe combinando com o seu parceiro que foi até a residência do senhor João Limeira e lá chegando falou para dona Josefina:

- A Policia prendeu o ladrão que roubou a roupa do seu marido!... Está o maior reboliço lá na Chefatura e o seu João Limeira me mandou buscar o peru que o Delegado quer para o acerto de contas com o larapio...

- Graças a Deus. Eu já não aguentava mais de tanta repugnância e reclamação!... E mandando os seus filhos pegar no quintal o peru já bem gordo e bonito, entregou-o toda contente ao comparsa do trapaceiro.

O golpe ficou conhecido na época como o CONTO DO PERU e todos riam e gozavam do mão-de-figa engabelado, alguns até mais ousados grugrulejavam feito um peru quando viam o João Limeira, que por duas vezes perdeu para o mesmo criativo e inteligente vigarista.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Um siri em necropsia

Temos de convir que a função de criticar ou elogiar não é tarefa fácil, pois às vezes nos esbarramos em nossos próprios conceitos contrários que podem não ser os conceitos verdadeiros, no entanto, esses dois entendimentos podem estar presentes nas mesmas ações de uma só pessoa.

Não podemos esquecer de que o gosto de cada um é algo muito subjetivo e pessoal. Assim, o gosto que alguém considera ruim e errado, para o outro é considerado bom e certo. Tudo depende do ponto de vista de cada um e do mundo em que cada um vive. É por isso que se diz que há gosto para todas as coisas, que há gosto para tudo e a cada um seu gosto lhe parece o melhor e, em assim sendo, dentro dessa filosofia é que o presente texto não faz crítica ou elogio ao gosto do personagem principal, vez que contra o gosto não há argumento.

Há muito tempo atrás, mais de perto, no ano de 1985 conheci quando do meu ingresso na Polícia Civil de Sergipe, um cidadão que passarei a partir de então a chama-lo com o nome fictício de Matusalém, pois os seus familiares podem não gostar da história apesar de ter sido a pura verdade do que realmente aconteceu. Matusalém era um funcionário público exemplar, um excelente profissional, um dedicado e exclusivo, jamais igualado agente auxiliar de necropsia que trabalhava no Instituto Médico Legal de Aracaju. Trabalhava já então por sua livre e espontânea vontade, vez que as duas possibilidades de aposentadoria haviam alcançado o seu período laborativo, ou seja, tanto por tempo de serviço, quanto por idade, o referido diferente e irreverente servidor podia ir embora descansar na sua cadeira de balanço, contudo, não havia quem colocasse isso na cabeça dele, passando então o mesmo a ser considerado um patrimônio da casa, um patrimônio vivo e exemplar do IML do nosso Estado de Sergipe.

O IML não era somente o seu trabalho, era a sua casa, seu lar, sua vida. Para Matusalém a sua simples e difícil função era a melhor de todas as outras existentes. Cortar cadáveres, procurar projeteis ou objetos em suas vísceras, mexer em corpos putrefatos, buscar mortos mutilados em acidentes, ver sangue, sentir sangue, sentir o cheiro forte do formol, do morto e da morte era para o bom velho Matusalém uma satisfação incomum que ele realizava sem luvas, sem máscaras ou qualquer tipo de proteção possível.

Praticamente Matusalém trabalhava todos os dias em todos os plantões porque aceitava qualquer coisa em troca, por vezes até algumas doses de cachaça, para cobrir o expediente dos seus colegas.

Corria o boato que quase sempre Matusalém fazia as suas refeições no seu próprio local de trabalho, mais de perto, almoçava, lanchava ou jantava na mesma sala em que os mortos estavam sendo submetidos aos exames cadavéricos e, até colocava a água que bebia, suco ou qualquer alimento para gelar nas geladeiras em que também se guardavam os defuntos.

O meu primeiro local de trabalho foi a extinta Delegacia Central de Aracaju que era localizada no prédio vizinho ao IML, por isso a minha aproximação com os funcionários daquele Instituto, mais de perto com o velho Matusalém a quem melhor me apeguei pela sua simples filosofia de vida, apesar das nossas extremas diferenças.

Calouro na Polícia e metido a ser o melhor de todos, não diferente dos jovens policiais que se acham superiores aos antigos, aos mais experientes, então nas minhas horas vagas ou de menor movimento na Delegacia, não só pela curiosidade, mas principalmente para me acostumar com a situação fúnebre e horrorosa que tanto me causava náuseas e que eu achava ser condizente com a minha carreira, então passei a visitar a sala de necropsia do IML para assistir ao trabalho efetuado pelos Médicos Legistas, na maioria das vezes com o auxilio de Matusalém, que para dizer a verdade era quem fazia todo o trabalho pesado de cortar, serrar, abrir, retirar o cérebro ou as vísceras do examinado em busca das evidencias das suas mortes.

Certo dia caí na besteira de entrar na sala quando da chegada de um defunto afogado que fora achado na praia de Atalaia em avançado estado de decomposição, já bastante mutilado e até largando aos pedaços. Era o meu desafio maior, meu teste de fogo, para me acostumar de vez com a situação devido as tantas outras diferentes anteriormente a que me submeti voluntariamente assistindo a exames de todos os tipos de mortes possíveis.

Ali mesmo constatei em meio a uma fedentina insuportável, a pele podre das pernas do defunto ficar grudada nas mãos nuas de Matusalém, contudo, tal fato era só o começo do esdruxulo, pois o pior estava por vir: Não demorou muito e caiu no chão da sala um grande siri, um siri que a gente aqui em Sergipe chama de siri patola.

O siri que veio dentro da barriga do inchado e deteriorado cadáver afogado, agora estava ali no chão sujo da sala, em líquido gosmento róseo-avermelhado, desorientado e armado com as suas duas puãs tais quais tesouras apontadas para o alto no sentido de se defender de um possível ataque e, para minha surpresa escuto Matusalém dizer:

- Chegou o meu tira-gosto!...

Saí rápido da sala para vomitar lá fora e voltar para a Delegacia acreditando ser brincadeira aquela frase do meu amigo Matusalém.

Momento depois me chega o velho Matusalém já com o siri cozinhado, todo vermelhão e, cantando vantagem:

- E aí doutor, vai encarar?...

- Você está ficando doido Matusalém... Jogue essa porcaria fora!... Onde já se viu querer comer um siri que estava dentro da barriga de um defunto e ainda mais podre e nojento?...

- E qual é a diferença de se comer ele ou de comer qualquer outro siri?... Será que o outro que o senhor pesca ou compra na feira, também não comeu defunto?...

- Vamos ponderar um pouco Matusalém... Isso que você quer fazer, além de absurdo, anti-higiênico e nojento é deprimente, eu pago outro tira-gosto qualquer para você, mas jogue esse siri no lixo.

- Anti-higiênico não é, porque quando se cozinha, mata-se todos os micróbios. Nojento é aquilo que o senhor come sem saber de onde veio. Deprimente é o senhor comer algo pensando que é bom, quando na verdade esta sendo enganado, está comendo algo ruim, que não vale nada, que pode lhe fazer mal... Por exemplo: O senhor compra no mercado a carne mais cara que existe, o filé, entretanto esse filé pode vir de uma vaca que morreu de uma doença braba ou de uma picada de cobra... E aí?... Eu não quero que o senhor me pague nenhum tira-gosto não doutor por eu já tenho o meu... Só quero que me pague duas doses de cachaça que é pra eu comer o meu siri...

- Se é isso mesmo que você quer Matusalém, então seja feita a sua vontade... Pode ir andando pra birosca que eu chego já pra pagar a sua cachaça...

E ainda meio incrédulo, cerca de vinte minutos depois fui até o barzinho da esquina e lá chegando constatei os cascos e restos do siri dentro de um prato em cima da mesa, e Matusalém sentado ao lado se gabando:

- Só estava esperando o senhor para me pagar também a saideira, doutor... O siri estava gordo que estava uma beleza!...

Daquele dia em diante não mais comi um siri sequer e toda vez que eu vejo um, me lembro do meu amigo Matusalém, uma pessoa simples, leal, verdadeira e trabalhadora que viveu um mundo estranho dentro desse estranho mundo com o entendimento e gosto peculiar que era só seu.

O velho Matusalém morreu alguns anos depois dentro do seu próprio local de trabalho. Dormiu e não mais acordou... Morreu no seu paraíso, na morte que pediu a Deus... Morreu tão pobre quanto nasceu, mas me deixou uma lição: Vivemos em um mundo em que cada um vive o seu mundo, apenas nos adequamos às regras e ao mundo dos outros.